Desde que me entendo por gente, neste nosso mundo hipócrita e vaidoso, o solidário, o bom, o justo e tantas outras virtudes são continuamente condenadas ao ostracismo. Além disso, a busca pela liberdade - a todo custo - fez de nós escravos dos nossos próprios desejos desenfreados.
Nunca esteve tão à margem dos processos de convivência social, a procura pelo bem e pelo equilíbrio. O normal é cultivar a loucura na inconseqüência, arriscando a vida no vício e buscando a banalização das sensações e dos sentimentos por puro prazer egoísta. Freqüentemente, a desculpa é a de que procuramos por uma "solução" para existência humana. Todavia, não nos damos conta ainda de que esta mesma "solução" ocorre pelo caminho mais fácil e covarde...
Lamento sim, essa nossa decadência moral fruto de uma tremenda ignorância. Embora acredite que esta mesma ignorância seja uma etapa necessária, rumo a condições de maior harmonia intra e interpessoal, fico aqui com meus botões, pensando: até quando o chafurdar nessa lama de iniqüidades? Até quando há de permanecer neste mundo a louca e indevida satisfação que se demora em nós, por ainda nos comprazermos num erro, por acreditarmos que essa decadência veio para ficar?
O imaginário popular parece contradizer a minha crença na impermanência da ignorância, no seu ditado "pau que nasce torto, nunca se endireita". É isso mesmo e pronto? Acabou? Vamos ficar apenas com a mobilidade social alheios à mobilidade moral? Para quê educação então?
O fato é que nos acomodamos à cegueira, ao tatear no escuro, aos tropeços e quedas... Parece que desenvolvemos um cinismo dormente perante o sofrimento que provocamos em nossas vidas e na dos outros. Cheios de remendos, damos com os ombros conformados (conformistas) e prosseguimos em verdadeira alienação sobre como estamos e a respeito de tudo que nos cerca.
Vale lembrar que a verdadeira revolução humana se dá de dentro para fora, no autodescobrimento. Essa revolução quase sempre passa desapercebida. Ela é silenciosa e ninguém a vê, por isso mostra ao orgulhoso a sua pequenez; é inalienável e perseverante, por isso desperta o preguiçoso do sono da inércia; é profunda e marcante, por isso o essencial e a responsabilidade tomam o lugar do frívolo; é lenta e gradual, por isso cura o impaciente...
Entretanto, quantos têm a coragem de lidar com idéias e hábitos "tortos", condicionados, tão bem acalentados e sedimentados no decorrer de anos e anos? Quantos têm vontade de reconhecer e aceitar as falhas trazidas no coração para depois diluí-las no auxílio ao próximo?
Podem ser mudados os governos, modificadas as instituições, criados novos ministérios e secretarias, erguidas escolas, universidades, templos e igrejas, e locais outros de excelência cultural, mas, sem reforma íntima, não haverá mudança real.
Sem cocheiros bons, sem homens de bem na condução das vidas, sem que nos conduzamos bem, as carruagens tenderão a novos tombos fatais: rodas e eixos quebrados, cavalos indisciplinados puxando em várias direções, atropelamentos...
Sem a busca pelo bem e pelo justo, que deve estar arraigada às nossas ações do cotidiano, por menores que elas sejam, toda a educação será uma farsa, ou apenas uma promessa vazia, e contiunaremos sendo (sabe-se lá até quando!) mandatários, presos a pesados grilhões, daquilo que trazemos de pior dentro de nós mesmos.
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"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas ...
Que já têm a forma do nosso corpo ...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos
mesmos lugares ...
É o tempo da travessia ...
E se não ousarmos fazê-la ...
Teremos ficado ... para sempre ...
À margem de nós mesmos..."
(Fernando Pessoa)
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Na imagem: O Grito (1893), by Edvard Munch.