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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Ausência


Duas faces revoltas, como reflexos num espelho d’água, distorcidos por nossas próprias mãos.

Tão irreconhecíveis nos tornamos um para o outro que não mais nos encontramos quando juntos estivemos pela última vez.

Eu perguntava a ti onde estavas, pensando ser outro alguém... Tu perguntavas a mim onde eu estava, escutando outro te responder... Passamos a acordar, todos os dias, com estranhos ao nosso lado e somente agora percebo que esses estranhos éramos nós mesmos...

Assim, tão distantes, cada vez que fazíamos amor, era uma traição...

A mágoa endurecida deu forma à indiferença e transformou em migalhas nossa cumplicidade. Tudo o que chamávamos de lar se desfez como um castelo de cartas, soprado por um brusco fechar de porta.

Uma vergonha muda insculpiu em nossos rostos, antes acobertados pela ilusão, a solidão de dois seres na companhia da ausência.

Nada mais seria como antes.

Não houve adeus.


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Na imagem: The Lovers, 1928 - René Magritte.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Doce Demais...

A horda em miniatura, furtivamente, lançara-se delirante até o objeto de seu prazer.

Peguei-a desprevenida, embriagada, bebericando com avidez, cada gota daquilo que, para elas, deveria ser algo semelhante ao néctar dos deuses.

Na verdade, a doçura não passava de sacarose... Entretanto, nelas, as formigas, não havia qualquer sinal de discernimento quanto a isso.

E lá estavam, num total alheamento, em meu refresco de maracujá, às centenas!

Sobre o espólio adocicado, a turba manifestava franca algazarra, não sobrando empurrões e cotoveladas. Ali, deram adeus a toda disciplina e organização que as caracterizam com freqüência, no âmbito da Entomologia, como sendo uma “sociedade”.

Impressionado, vi dezenas flutuando, sem vida, na superfície do suco e muitas outras se afogando.

Mais de perto, constatei a causa mortis: insatisfação crônica. Sim, não se satisfizeram com que já haviam bebido. Quiseram mais e mais e mais! Abdomens pesados, que estavam repletos daquele mel, fizeram-nas tombar em direção à morte - ao que antes lhes sustentou o fascínio e o prazer excessivo...

Se falassem, diriam certamente que a culpa daquele morticínio era da gravidade, ou do copo que era liso demais, ou da química do açúcar, ou ainda da acidez do maracujá, ou dum “infeliz” que colocou o resto de suco naquele local de propósito.

Hora de acabar com o espetáculo.

Dei, sem aviso, algumas leves batidas no copo e dispersei os minúsculos vândalos sobreviventes. Mostrei para elas quem mandava ali...

Se falassem, diriam que os deuses estavam furiosos e que seriam punidas severamente com tempos de chuva torrencial ou estiagem total!

A tropa liliputiana finalmente debandava apavorada, de volta ao seu reduto.

Levantei-me.

Fui à copa.

Lavei o copo.

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Na imagem: Moebius Strip II, 1963 - M. C. Escher.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Saindo do Paraíso das Sombras


Surpreso, dei-me conta de que grilhões foram partidos.

Aquilo que me atormentava foi embora sem repressão, sem violência...

Estou perplexo e em paz.

Aquelas sombras minhas, desmancharam-se suaves e silenciosas, a maneira das trevas que recuam sem resistência, quando ao primeiro contato com as luzes da aurora.

Desapareceram como por encanto, perdendo a força incrível que tiveram sobre mim...

Vi, aliviado, dispersarem-se densas nuvens, ante o sopro contínuo duma brisa penetrante...

Antes escravo dessa força obscura, agora me encontro em convalescença, recobrando a autoconquista... Enfermo fui. Abatido pelo vírus da imprudência que expôs chagas profundas, carentes do bálsamo que só a disciplina poderia me conceder...

Todavia, pensei vacilante: a que preço realizaria essa disciplina em mim? Se tudo fosse feito de modo equivocado, aquele mal torna-se-ia mais forte, pela mesma razão que tudo proibido é mais atraente, cativante...

Ocorreu-me, então, a lembrança de um pensamento: “se a corda estiver muito esticada arrebenta, se estiver frouxa não toca”. Lançada estava a semente primordial de toda a minha recuperação...

Nunca esquecerei aqueles que me suportaram pelos seus braços e pelas suas amorosas palavras nas horas de franca aflição. Sábios amigos, pacientes e piedosos cujo grau de compreensão da natureza humana ainda estou muito aquém de alcançar... Não houve julgamento: ninguém atirou a primeira pedra... Pelo contrário, todos me incitaram a um constante autoperdão...

Gratidão eterna, a eles, evoco aqui.

Fui ao inferno e, se não fosse a serenidade com que andei por lá, inspirada por esses luminosos amigos, por lá teria ficado. Se houvesse resvalado no remorso incessante, no queixume improdutivo, na inquietação ingrata, indubitavelmente, teria permanecido para muito além dos dias em que passei naquele "paraíso das sombras"...

Apenas a resignação não submissa daquela infeliz condição abriria uma porta para entrada de quem me estenderia as mãos - e que não me cobraria um ceitil sequer. Assim o fiz: aceitei-me, não sendo mais conivente, porém, com os desacertos que me assolavam.

Quem me reconduziu, da escuridão íntima, para a claridade exterior; de um caos irracional, para a ordem da razão e da consciência, no final da jornada, liberou-me, deixando-me mais uma vez entregue ao meu próprio e inalienável livre arbítrio...

Sigo em frente, na certeza de que só dependo de mim mesmo, para não mais voltar a errar.

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Na imagem: L'Empire des Lumieres, 1954 - Rene Magritte.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Projeção


A alvorada já principiava tomar conta dos espaços. Chegava sem pressa, de braços dados com uma garoa fina que descia suavemente por sobre os traçados urbanos.

Um aroma gostoso surgia com a chuva, inebriando os sentidos... Amarras foram desfeitas e fui ao encontro dos meus sentimentos...

Ao sair de casa, ouvi os detalhes, nos edifícios e muros, cobertos de musgos e liquens, gritarem lembranças. Tudo era tão pichado de nostalgia, momentos de minha infância.

Andei em direção à praia, duas quadras de distância de onde moro.

No caminho, a umidade me revelou agradáveis sensações, enquanto atravessava uma avenida em pleno sinal vermelho. Carros não havia, nem alguém aparecia. Eu, ali sozinho, quem era? Por alguns instantes, acabei desconfiando de minha própria existência... Se eu sonhava, não sabia ao certo...

Ao passar por debaixo dum poste ainda aceso, surgi como algo distinto, luminoso. Ele, o poste, fora a única testemunha que me revelou acerca da presença etérea do meu eu por sobre as calçadas... Minha atenção voltou-se para a sua luz e enxerguei, no contraste com a penumbra que me cercava, uma miríade espetacular de gotas cintilantes caírem sobre mim.

Próximo à avenida beira-mar, pude sentir a brisa se tornar mais forte e prazerosa. Trazia o hálito salgado do oceano, espalhando suave maresia.

Tinha, agora, a mente arejada e o coração molhado de sereno.


Seiva & Fantasia (Dedicatória a Uma Amiga)



Enraizada, compôs a frondosa árvore, com suas folhas ao sabor do siroco rebelde, a melodia duma fantasia.

Sonhos e orvalhos, notas e alegria, inspirando harmonia.

Pássaros a solfejar e cores mesclados ao brilho refrescante dos frutos pendentes nos galhos-batutas.

Executa agora, e rege assim com maestria, a frondosa árvore, sua música livre e inocente, a impregnar todo ambiente - leveza sonora - da mais pura paz profunda, no raiar da aurora...


* * *

Embora na época em que escrevi o texto acima (publicado agora com pequenas alterações), não pensasse em alguém, quero, neste momento, dedicá-lo - com todas as boas sensações e recordações que ele me traz - a uma pessoa em especial.

À memória de uma nova(?) amiga, cujo nome já conhecia, mas, não sei dizer por qual motivo, reencontrei em minhas lembranças com tanta vividez...

Sei que ela ainda se encontra entre nós, de outra forma... Sei também que o pensamento, expresso aqui pelo coração, até ela, irá chegar...

Um abraço fraterno e carinhoso para você.

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Na imagem: "Nascer do Sol, tirada de minha janela", bosque HCC UMUARAMA-PR, foto by Udson Pinheiro.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

O Macaco, A Moringa e O Monge


Realmente, estava difícil.

A moringa, embora possuísse formas generosas, tinha um gargalo bastante estreito...

O macaquinho faminto nunca iria conseguir retirar a sua pequena pata daquela vasilha, segurando o petisco.

Um jovem monge, de nome Mamoru, vira toda a cena. Pondo de lado os sutras, foi ligeiro ao encontro do animalzinho em apuros. Gesto este que sofreu, na voz de seu superior, uma pronta repreensão. Monge algum deveria, pelas normas do templo, abandonar a leitura dos escritos sagrados!

Mamoru, nem de longe importou-se com a advertência de seu mestre. Tão pouco, permitiu-se abalar pela rápida lembrança das já conhecidas conseqüências que sua indisciplina poderia trazer-lhe... Mesmo assim, segurou e entornou cuidadosamente a moringa com uma das mãos para logo fazer cair na outra a doce iguaria.

Sorrindo como uma criança, viu o bichinho, com o fruto maior que a boca, ganhar o mundo novamente...

Ao retirar-se, o macaquinho atrapalhado derrubou a moringa que se espatifou em infinitas partes. Neste instante, o jovem monge surpreedeu-se ao ver, surgindo dos fragmentos de barro, cercado pelo brilho dourado mais intenso, Siddhartha Gautama - o Buddha Shakyamuni, Senhor da Compaixão!

Um aroma de sândalo invadiu o recinto...

Mamoru reverente e de joelhos viu, maravilhado, a destra luminosa do numinoso ser tocar-lhe o ombro, gentilmente. Após sentir a virtude daquele Buddha, teve a vívida sensação de que labaredas consumiam-no, todavia percebesse o corpo de carne ainda íntegro...

A ardência se propagou ao longo de toda a coluna vertebral, alcançando, finalmente, o alto de sua cabeça. Seguindo o ardor, sobreveio um frescor de plenitude. Uma intensa paz arrebatou a sua alma para um mundo além do imaginado.

Algo como uma flor de lótus, ali desabrochou lentamente e Mamoru atingiu a iluminação...

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Na imagem: estátua de Buddha situada no pagode de Shwe Kyee Myin, Mandalay, Myanmar.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Sendo Verdadeiramente Grande



Montanha imponente
Coberta de neve,
Escondeu-se na alvura:
Humildade pura.


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Na imagem: o Monte Fuji, pico mais alto do Japão (3.776 metros de altura), localizado na província de Shizuoka.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Ao Encontro da Luz


A rocha se rende ao esmerilho, vira o diamante cobiçado.

O metal vai à forja, vira o aço da espada.

A semente é lançada ao estrume, vira o perfume duma flor.

O trigo é sacrificado no forno, vira o pão que aplaca a fome.

A lagarta desaparece no claustro do casulo, vira o encanto da beleza.

O pássaro agita suas asas no céu rarefeito, vira ode à liberdade.

O ser humano vai ao encontro da dor, vira amor...

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Na imagem: Allegorie de Soie, 1950 - Salvador Dalí

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Alquimia da Alma


Os sentimentos são conseqüência da evolução do que se encontra no recanto mais primitivo de nosso psiquismo... Por origem, são naturais.

O social ajuda, indubitavelmente, o ser humano, no burilamento dos sentimentos. Em sociedade, evoluímos o que sentimos, através das relações de ódio e amor, coragem e covardia, compaixão e crueldade, sentindo e percebendo as conseqüências que elas trazem consigo.

Aqui, é o amor egocêntrico de alguém (egoísmo) que se transforma mais tarde num amor pelo marido ou esposa, ou ainda pelos filhos, pela Nação...

Ali, é o sentimento de culpa por um mal realizado e que, após a expiação devida, se converte num sentimento de gratidão pela oportunidade de passar pela experiência do erro e da aprendizagem...

Acolá, é o sentimento de tristeza que se demonstra, por se achar só, que cede lugar ao sentimento de solidariedade por descobrir que ninguém é solitário quando é solidário...

Dessa forma, os sentimentos vão se transubstanciando uns nos outros, numa verdadeira alquimia redentora, facultando-nos, em meio a experimentos e provações do cotidiano, através de grandes e pequenos ensaios, a conquista paulatina de nosso ouro espiritual.

Este fascinante assunto ainda é repleto de mistérios... E me parece inesgotável, tanto quanto infindável é a nossa evolução...

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Na imagem: Mosaic II, 1957 - M. C. Escher.

Sonetóide V (Ch'ien, "O Criativo")



Eclode no céu, terrível tormenta,
Entre raios ruge a voz dum trovão,
Serpeando nos nimbos, o ser se apresenta,
Com a sua chegada, irrompe um clarão!

Seu hálito sopra comoção violenta,
Elevando as ondas, explodindo o vulcão,
Enchendo represas, que a chuva arrebenta,
Lançando carvalhos, de milênios, ao chão.


Ante a sua passagem, as feras se escondem,
O homem se curva, pedindo perdão,
A natureza se agita com a mutação!

Senhor dos ciclos, do caos e da ordem,
Da morte, da sorte, da germinação,
Condutor do Destino, implacável Dragão!

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Na imagem: o Dragão Celestial. Ser que representa, na mitologia chinesa, a força criativa do universo.


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Sonetóide IV (Miríade)



Inocente natureza,
Inspiração divina verdejante,
Úmida sensação refrescante,
De insustentável tom de leveza.

Harmonia nos seres reinante,
Fonte de inesgotável pureza,
Da variedade que gera riqueza,
Coroada com o belo ofuscante.


Folhas e flores unidas pela sutileza
Dum dégradé de colorido inconstante,
Tingindo com precisa delicadeza.

Criatividade aromática penetrante,
Que nos tange a alma com gentileza,
Despertando um amor latejante.

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Na imagem: floresta de algum lugar da Terra do Sol Nascente.

Sonetóide II (Urbe et Caos)



Labuta em farta agonia a cidade;
Turba social que a rotina abate;
Sedenta pelo ouro ofertado ao mascate;
Frenética busca, conformada insanidade.

Intratável perdura a necessidade,
Sugando das criaturas o suor escarlate;
Reprimida a vontade em alviltante embate;
Apenas sobram os desejos, idólatras da ansiedade.


Esvai-se a realidade insustentável,
Que maltratada implora afeição,
No cárcere urbano da egóica alienação.

Realçando a ignorância, caótica condição,
Ergue-se vitoriosa humana degradação,
Modelando imprudente o réprobo miserável.

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Na imagem: Hora do rush em Hong Kong. - descoberta in Blogwaw.

Sonetóide I (Redenção)



Luz e trevas disputam a quintessência,
Que fragmentada se rende à mutação,
Fazendo brotar o real, antes aparência
No íntimo, sob o despertar da evolução.

Transubstanciada a consciência,
Modelada por inquietante oposição,
Rompe a crosta da ausência,
Alçando vôo para a renovação.


Retoma o encanto da inocência,
Na sublime purificação da existência,
Após catártica fecundação,

Sobrevindo o amor em transcendência,
Na gloriosa experiência,
Da humana redenção.

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Na imagem: Day & Night, 1938 - M. C. Escher.

Posse

Uma flôr de jasmim!

Quero dá-la para alguém: a eleita de meu coração!

Todavia, meu desejo de retirá-la do lugar em que se encontra será sua perdição...

Uma vida por um breve momento de alegria. Quanto tempo duram as rosas nas mãos de quem amamos?

Os espinhos dizem: "não me leves!". As pétalas perfumadas dizem: "sim! Traz as tuas mãos até aqui!".

Amar sem o desejo de possuir é um arte.